A Umbanda nasceu aqui

Talvez sejam poucas as pessoas que saibam caber a São Gonçalo o privilégio de haver sido o berço do surgimento, em 1908, da Umbanda, tida por seus adeptos como a primeira e única religião verdadeiramente brasileira por reunir em suas práticas elementos da cultura religiosa de índios, africanos e europeus, as três etnias de cuja fusão resulta o Brasil atual.

Tudo começou com Zélio Fernandino de Moraes, um jovem de família tradicional no bairro de Neves e cujo pai, fazendeiro, foi o primeiro a exportar frutos dos laranjais gonçalenses para a Inglaterra no princípio do século passado.

No dia 10 de abril de 1908 o jovem Zélio comemorou a passagem de seu 17º aniversário e tinha como planos ingressar na Marinha de Guerra, iniciando-se nos estudos para prestar exame na Escola Naval. Porém, dias depois foi acometido de uma estranha paralisia, que o deixara preso ao leito. Chamados os médicos mais importantes da época, de São Gonçalo e Niterói, deu-se início a vários tratamentos, que se sucediam sem apresentar melhoras. Nenhum dos médicos conseguia diagnosticar a doença e seu estado de saúde só se agravava.

Eis que, a partir de outubro daquele ano, ele começou a falar palavras sem nexo, teve visões e apresentou quadro de aparente perturbação mental. Outros médicos foram chamados, sem nenhuma solução. No princípio de novembro, o próprio Zélio anunciou a seus pais que no dia seguinte voltaria a andar. Com efeito, assim ocorreu, mas sem que desaparecessem os sinais tidos como de distúrbio da mente.

A família, muito católica, chamou padres, que aconselharam tratamento médico especializado. Um vizinho, então, orientou-a a levá-lo à Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro, que funcionava em Niterói (em sede provisória, na Rua da Conceição, 133, sobrado, de onde mudou, anos depois, para a sede definitiva, na Rua Coronel Gomes Machado, 26) e fora fundada há pouco, em 30 de junho de 1907, pois poderia ser uma obsessão espiritual.

No dia 15 de novembro de 1908, Zélio lá chegou, reuniu-se com o presidente Eugênio Olímpio de Souza e outros membros da Federação Espírita. Imediatamente, incorporou um caboclo e foi recriminado, posto que a organização seguia a doutrina de Alan Kardec, o médico francês que criara uma nova forma de espiritismo, unindo fé e ciência. Zélio protestou e anunciou que, no dia seguinte, seria iniciada uma nova religião.

Com efeito, no dia 16 de novembro de 1908, à noite, em sua residência, na Rua Floriano Peixoto, 30, em Neves, São Gonçalo, sem razão aparente, reunia-se verdadeira multidão para assistir àquele fato. E ali, naquele momento, foi fundada a Tenda de Umbanda Nossa Senhora da Piedade.

Zélio nunca explicou a razão da palavra “umbanda”, até mesmo porque ninguém lhe perguntou, embora ele tenha vivido até 1975. Por isso, os historiadores divergem sobre sua procedência, mas a imensa maioria acredita que ela decorra do vocábulo “m’banda”, usada pelas tribos Quimbundo, da África, para designar os seus sacerdotes, e que era também uma palavra sagrada dos índios tupis. Portanto, seria “Tenda de Sacerdotes”, numa tradução livre.

Zélio Fernandino de Moreaes - fundador da Umbanda

Zélio Fernandino de Moreaes – fundador da Umbanda

Sua criação foi seguida, no mesmo ato, de algumas regras básicas e simples, tais como o uso apenas de roupas brancas, ter como adereço somente uma fita da cor do orixá ou do santo do dia comemorado, não receber nenhuma recompensa dos que recorrem à Umbanda, não praticar sacrifício de animais e fazer da caridade a prática permanente segundo o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Em 1918, Zélio criou sete novas tendas (Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora da Conceição, Santa Bárbara, São Pedro, Oxalá, São Jorge e São Jerônimo), das quais a maioria na cidade do Rio de Janeiro, sendo a última delas em Neves, onde criou uma escola primária para as crianças pobres do bairro, e começou a expandir sua crença por todo o território nacional.

Casado com dona Isabel de Moraes, com ela teve duas filhas, Zélia e Zilméia, às quais passou a direção da tenda original em 1963 e mudou residência, com a esposa, para Boca do Mato, em Cachoeiras de Macacu, RJ, onde faleceu em três de outubro de1975.

Zélio, entretanto, não se dedicava apenas à sua crença. Como era norma não receber recompensa pelo bem distribuído, dedicava-se às atividades profissionais normais, assumindo os negócios de seu pai, e fez uma incursão na política, elegendo-se vereador em 18 de maio de 1924 e empossado em 10 de junho seguinte. Foi reeleito para um segundo mandato em 10 de abril de 1927, empossado no dia 30 seguinte e escolhido por seus pares, na mesma data, para secretário do Legislativo gonçalense. Após cumprir o novo mandato de três anos, candidatou-se pela terceira vez em 1929 e não se reelegeu, o que o levou a afastar-se da política. Quando de seu falecimento, a Câmara Municipal deu seu nome à Rua [vereador] Zélio de Moraes (erradamente grafado como Zílio, em placa da prefeitura), no bairro de Mangueira.

A casa em que nasceu a Umbanda, esquecida e demolida durante o Governo Aparecida Panisset (comentário do editor da página)

A casa em que nasceu a Umbanda, esquecida e demolida durante o Governo Aparecida Panisset (comentário do editor da página)

Infelizmente, o importante sítio histórico não só para a cidade, como para o estado do Rio e a nação brasileira, não conseguiu resistir à força de marretas e picaretas: o imóvel da Rua Floriano Peixoto, 30, foi vendido por herdeiros de Zélio de Moraes em fins de 2010 ao empresárioWanderley da Silva. Em setembro e outubro do ano seguinte, ele determinou que o prédio histórico fosse derrubado para em seu lugar erguer uma loja de alumínios. Os protestos, inclusive do cantor e compositor popular Martinho da Vila, católico assumido, mas defensor da História, foram inúteis. Até porque tudo ocorreu com o beneplácito da prefeitura municipal.

 

Fontes: HTTP://www.umbanda.brasilpodcast.net/audio

            O Fluminense, 10-04-1908, p. 2; 10-06-1924, p. 1; 10-04-1927, p. 1; 01-05-1927, p. 1; e 07-03-1929, p. 1, Biblioteca Nacional.

            O Estado, 25-05-1924, p. 1, Biblioteca Nacional.

            A Gazeta, 06-06-1924, p. 1; 24-08-1924, p. 5, e 01-05-1927, acervo de Cezar Augusto de Mattos.

            Jornal Extra, Rio de Janeiro, RJ, 02-10-2011, p. 3; 04-10-2011, p. 5; e 05-10-2011, p. 1 e 3.

            O Globo, Rio de Janeiro, RJ, 05-10-2011, p. 20.    

1 comentário em “A Umbanda nasceu aqui”

  1. Na verdade, Zélio não só explicou o significado da palavra Umbanda como o fez várias vezes, existindo inclusive gravações, onde ele próprio narra o que é explicado a seguir O nome originalmente dado foi Alahbanda, dado em homenagem a entidade Orixá Malet, um de seus mais importantes auxiliares na estruturação da doutrina, que era Malaio e muçulmano. Alah, significando Deus, ou Alah para os muçulmanos e banda, com o significado de lado, ou ao lado. Ou seja, segundo o próprio Zélio, o significado de Umbanda é “Deus ao lado” ou “Ao lado de Deus”. Porém, por uma questão de ajustar melhor a sonoridade da palavra, resolveu-se modificar para Aumbanda, com Aum, ainda segundo Zélio, significando Deus em grego, que teria evoluído, posteriormente, para Umbanda. Sem alterar, porém, o seu significado.

Deixe um comentário para Leonardo Cunha Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *