As agruras da biblioteca

Com mais de um milhão de habitantes, São Gonçalo nem por isso tem uma boa rede de bibliotecas públicas. Há uma só, embora não seja isto demérito se considerarmos que existem quase duas centenas de bibliotecas espalhadas pelo município, em unidades de ensino e em organizações sociais, destacando-se entre estas a do bairro Jardim Catarina, iniciativa particular que conta com cerca de trinta mil volumes. Já tivemos, no Hospital Luiz Palmier, uma biblioteca científica com mais de mil volumes, iniciativa do médico e professor Francisco Pimentel, na década de 1930, mas ela também já foi para as calendas gregas.  

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Porém, a história da única biblioteca realmente pública existente chega a ser dramática, se voltarmos aos primórdios da cultura letrada no século XIX. Ainda éramos distrito de Niterói, o que explica muita coisa, mas não justifica nada. Naqueles tempos, se já era difícil a uma freguesia que não fosse sede municipal ter sua escola pública (a primeira que tivemos foi criada em 1829 e só instalada quatro anos depois), dá para imaginar a impossibilidade absoluta de ter-se uma biblioteca.

Curiosamente, a primeira biblioteca instalada em nosso território pertencia, legalmente, a Maricá, como demonstrarei mais adiante. Explico: em 20 de dezembro de 1871, o governo provincial baixou a lei número 1650 e determinou que todas as sedes municipais tivessem uma biblioteca popular e que ela fosse mantida pela Câmara de Vereadores (que exercia funções executivas, à época). Dos municípios fluminenses, só os de Vassouras, Valença, Paraíba do Sul, Barra Mansa, Campos dos Goytacazes, Cabo Frio e Petrópolis informaram dispor de sala apropriada. Para colaborar com o corpo mole das Câmaras, o regulamento daquela lei não fora editado e só viria a sê-lo em primeiro de março de 1873. A providência legal não foi suficiente para fazer cumprir a ordem. Determinação dada, determinação descumprida na grande maioria dos municípios. O que obrigou até a intervenção imperial, como ocorreu em Itaguaí, onde o imperador esteve em visita em 18 de outubro de 1880 e soube que ali ainda não se instalara a biblioteca popular por falta de recursos. Fez a doação financeira e ela foi inaugurada em dois de dezembro seguinte, mas o esforço de dom Pedro II tornou-se inútil porque ela foi fechada meses depois pela Câmara Municipal.

Niterói não teve a sua porque a Câmara Municipal argumentou que já existia uma na Escola Normal (administrada pela Província) e bastava que ela abrisse as suas portas ao público, o que só ocorreu em primeiro de julho de 1884, quando seu acervo foi transferido para o Instituto Pedagógico. Se esta era a disposição na sede do Município, dá para imaginar o que acontecia nas demais freguesias, São Gonçalo entre elas.

Em 1883, só estavam em funcionamento as bibliotecas populares de Barra Mansa, Campos dos Goytacazes, Itaboraí, Macaé, Magé, Paraíba do Sul (sede), Paraty, Petrópolis, Bom Jesus do Ribeirão (freguesia de Resende), Serraria (freguesia de Paraíba do Sul) e Valença, que haviam emprestado 7981 romances e 2628 outros livros, tendo sido frequentadas por 5870 leitores, dos quais apenas 657 eram mulheres. Magé, Barra Mansa e Valença eram as mais frequentadas. Naquele ano, em sete de dezembro, a Câmara Municipal de Angra dos Reis inaugurou a sua biblioteca, e em 23 de abril seguinte foi a vez da de Santo Antônio de Pádua.

Porém, nem tudo são flores. Pelo menos, para o inspetor geral de ensino, professor Aidano de Almeida, e o diretor de instrução pública da província, conselheiro Josino do Nascimento Silva, que diziam: “As bibliotecas populares estão muito longe de corresponder ao seu fim natural – a instrução do povo –, não à instrução profunda ou sistemática, por impossível, mas a de acumulação de conhecimentos aplicáveis aos usos da vida… Que utilidade poderá prestar ao povo a biblioteca de Nova Friburgo, composta em grande parte de obras de alto valor científico, mas inacessíveis à sua compreensão? Ou a de Macaé, na sua maioria provida de livros de direito e de prática forense? Ou a de Itaboraí, amálgama de obras difíceis de ciência, romances, legislação e relatórios? Ou a maçônica de Cantagalo, onde existem, é verdade, alguns trabalhos sobre artes e indústrias, mas tudo em francês? Ou a de São João da Barra, em cujas prateleiras figuram pela maior parte livros de importância somenos?” A estas palavras de 1881, Josino junta outras mais ácidas em 1884, tal a preferência dos leitores pelos romances: “Pretendeu-se estimular o gosto pela leitura começando por livros de imaginação [romances], e estragaram-no, de modo que atualmente os outros livros causam tédio e são desprezados.”   

Como sempre, problema brasileiro, jeitinho brasileiro, como veremos a seguir.

Também a Câmara Municipal de Maricá não obedeceu à ordem provincial. Sequer explicou suas razões. Apenas ignorou a lei. Então, fazendeiros de São Gonçalo, com trânsito nas terras maricaenses, criaram em 21 de março de 1880 a Biblioteca Popular de Maricá, para funcionar na Fazenda de… Pachecos, localidade da então freguesia de Cordeiros, poucos anos depois (1890) integrante do então novel Município de São Gonçalo. As famílias Azevedo, Sodré e Mendonça constituíram a Biblioteca Familiar de Maricá, presidida por José Francisco Ribeiro de Mendonça, secretariada por José Paulo de Azevedo Sodré Júnior (em 1916, seria vereador, presidente da Câmara e prefeito de São Gonçalo, sem o epíteto Júnior) e sendo sua bibliotecária dona Ernestina Sobral. Com a leitura anual de 385 livros, só mudou a diretoria em 1883, que passou a ser composta por José Mariano Alves (presidente), Joaquim Alberto Ribeiro de Mendonça (vice), Elisa de Azevedo Sodré (bibliotecária) e Antônio Bráulio Ribeiro de Mendonça (secretário). Em março de 1885, era dirigida pelos médicos Antônio Cândido (presidente) e E. Xavier (vice-presidente), secretariada pelo fazendeiro José Paulo de Azevedo Sodré Júnior e tendo por bibliotecária dona Elisa Sodré. Reunia mais de mil volumes e só no primeiro trimestre daquele ano tivera 64 leitores. A escolha da Fazenda de Pachecos para ser instalada a biblioteca de Maricá é explicada pelo historiador Emmanuel de Macedo Soares: “As relações entre Cordeiros e Maricá eram bastante íntimas, porque o José Mariano Alves era dono de quase tudo aquilo, tinha raízes na cidade vizinha e casou-se com uma natural de lá. Afora isso, aqueles fazendeiros e sitiantes todos que ficavam para o fundo da freguesia, próximo da serra – e essa parte de Cordeiros era como “Serra” conhecida –, sempre se comunicaram mais com Maricá do que com Niterói.”  

A experiência, entretanto, durou somente até 1886 (quando tal biblioteca mudou-se efetivamente para Maricá) e, no ano seguinte, com a fundação do Centro de Melhoramentos Nova Aurora Cordeirense foi criada uma biblioteca em Cordeiros, graças aos esforços dos professores Manoel Estácio da Costa e Silva e Antônio Vieira da Rocha. Com a transferência do primeiro deles, em 1890, para a Ponta da Areia, em Niterói, encerraram-se suas atividades.

Biblioteca municipal, mesmo, só veio a existir de fato em princípios de 1895, quando o filólogo e professor Manoel Pacheco da Silva Júnior foi eleito presidente da Câmara Municipal em sete de janeiro e a criou logo depois, fazendo-a funcionar no paço municipal que se instalara provisoriamente onde hoje é a Instituição Cristã Amor ao Próximo (na então estrada geral e hoje chamada Rua Feliciano Sodré). Foi uma dor de cabeça para Pacheco Júnior, acusado pela oposição de sobrepreço na compra dos primeiros volumes, do que se livrou provando que seus editores, no Rio, é que haviam fornecido gratuitamente a maior parte do acervo inicial. Com a inauguração da sede definitiva do Legislativo, em 1899, perdeu-se de novo a biblioteca, que foi para o limbo por quase trinta anos. O prefeito Mentor de Souza Couto tentou recriá-la no princípio de 1926 e, em janeiro, chegou a receber a doação de 50 livros, feita por populares, mas em maio seguinte devolveu o cargo ao titular, Álvaro Lopes Martins (a quem substituíra durante período de licença para tratamento de saúde) e seu esforço foi inútil, porque tudo se perdeu.

Somente em treze de julho de 1932, pelo ato nº 34, o prefeito Samuel Barreira recriou a biblioteca, no salão nobre da prefeitura, por ele inaugurada em 15 de outubro seguinte; porém, mais uma vez, teve vida efêmera, porque desativada por seus sucessores. Coube ao prefeito Nelson Correia Monteiro, pelo decreto nº 09, de seis de setembro de 1940, criar pela quarta vez a biblioteca municipal, instalando-a no hall de entrada do prédio da Municipalidade (antigo paço municipal), tendo como principal estimulador o médico Luiz Palmier, que lhe doou os primeiros dois mil volumes, até que, em 1950, com a reconstrução da sede do poder executivo, a Câmara Municipal deliberou doar o acervo da biblioteca à Associação Gonçalense de Estudantes (AGE), criada pouco antes e cuja sede provisória, em imóvel alugado, estava na Rua Coronel Moreira Cesar, esquina da Rua Professor (José Agostinho) Lara Vilela, no então chamado bairro da Vila (hoje, Zé Garoto). Em 1966, a AGE não tinha mais como pagar o aluguel e foi despejada, sendo todos os livros levados para o Depósito Público Estadual que existia no bairro de Colubandê e ali desapareceram.

No mesmo ano, o prefeito Joaquim Lavoura recriá-la-ia, pela quinta vez, com a construção do Auditório Municipal (depois transformado em repartição da Secretaria de Fazenda, plenário e administração da Câmara Municipal), em anexo da prefeitura, e deu-lhe o nome de Genebaldo Rosas, homenagem à memória do rotariano que lutava pela criação de bibliotecas públicas no Brasil e que conseguira do Rotary Clube a doação do mobiliário e de vários volumes para ela. Coube sua organização à bibliotecária Sílvia Cavalcanti Pereira Nunes, que fora da Biblioteca Nacional e da Universidade Federal Fluminense.

Seu destino, entretanto, ainda enfrentaria percalços; em 1979 foi desativada e, em 1983, o prefeito Hairson Monteiro a reativou e abrigou em imóvel alugado na Rua Coronel Rodrigues, esquina da Rua Salvatori, ali permanecendo até 1988, quando foi inaugurado o Centro Cultural Prefeito Joaquim Lavoura por ele construído e para lá definitivamente transferida a biblioteca, felizmente, ainda existente no presente ano de 2013, embora continue a ser a única pública na Cidade.

 

 

Fontes: Relatório do presidente da província Bento Luiz de Oliveira Lisboa, de 20-03-1873, p. 11 e anexo nº 35.

             Relatório da Diretoria de Instrução Pública da Província, de 26-08-1875, p. 41, anexo à mensagem provincial de 08-09-1875 à Assembleia Legislativa.

             Relatório do vice-presidente da província, João Marcelino de Souza Gonzaga, de 15-03-1881, p. 17.

Relatório da Diretoria de Instrição Pública, de 08-09-1881, p. 43.

             Mensagem do presidente da província José Leandro de Godoy e Vasconcellos à Assembleia Legislativa, em 08-08-1884, p. 2.

Relatório da Diretoria de Instrução Pública, de 07-07-1884, p. 51, 52 e 53.

Relatório da Diretoria de Instrução Pública, de 03-07-1885, p. 20 e 21.

Relatório da Diretoria de Instrução Pública, de 30-06-1886, p. 15 e 16.

             Relatório da Diretoria de Instrução Pública de 30-06-1888, p. 20 e 21.

             O Fluminense, 17-01-1926, p. 1;

             O Fluminense, 04-04-1883, p. 2; 22-04-1885, p. 1; 10-07-1885, p. 1; 23-11-1887, p. 2; 04-12-1887, p. 2; 10, 15 e 16-07 e 09-08-1896, p. 2.

              Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 13-07-1932, p. 11.

              O São Gonçalo, 16-10-1932, p. 4; e 08-09-1940, p. 4.

              São Gonçalo Cinquentenário, de Luiz Palmier, Imprensa Nacional, 1940, p. 133.

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