Foi obra do acaso, é certo, mas mesmo assim tornou-se o primeiro relato sistemático sobre o surgimento do atual Município de São Gonçalo. Antes dele, outros escreveram relatórios sobre a então freguesia, mas ninguém de maneira tão densa.
Foi o monsenhor José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, ou, simplesmente, monsenhor Pizarro, quem relatou sua visita pastoral às freguesias subordinadas ao Arcebispado do Rio de Janeiro, no final do século XVIII, entre elas a de São Gonçalo de Amarante. E citar a matriz católica gonçalense, além de outras igrejas, capelas e oratórios, é o mesmo que falar da história do município, pois foi ela o núcleo urbano inicial, principal cemitério da futura cidade durante cerca de trezentos anos, o centro dos casamentos, a fonte de várias iniciativas culturais, o pólo político por três séculos. Enfim, pela matriz passavam todos os fatos de relevância na vida da cidade e, nas demais igrejas, capelas e oratórios, também se davam os mesmos fatos, com foco nas localidades em que estavam.
Monsenhor Pizarro era carioca de nascimento, a 12 de outubro de 1753, filho do coronel Luiz Manuel de Azevedo Carneiro da Cunha e Maria Josepha de Souza Pizarro. Depois de fazer os primeiros estudos em sua cidade natal, matriculou-se na Universidade de Coimbra e ali se diplomou bacharel em Cânones. Aos 23 anos de idade, foi ordenado presbítero e, por decreto de 20 de outubro de 1780, confirmado em 23 de março de 1781, ocupou um canonicato na então sé fluminense, na qual tomou posse em 25 do mesmo mês de março. Muito jovem, não era só a religião que lhe interessava, mas também a História, a começar a da própria sé em que servia.
Começou a recolher documentos e teve o trabalho facilitado pelas visitas pastorais que lhe foram determinadas pelo bispado em 17 de agosto de 1794 e 10 de abril de 1799. Delas resultou a publicação dos nove volumes de sua obra intitulada “Memórias históricas do Rio de Janeiro, e das províncias conexas à jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil”, editada pela Impressão Régia de 1820 a 1822. Antes disso, entretanto, foi para Portugal e ali, além dos deveres religiosos, recebeu o hábito da Ordem de Cristo, por decreto do príncipe regente Dom João, a quem acompanhou, na nau Príncipe Real, na vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808. Aqui, foi deputado da Mesa de Consciência e Ordens, procurador-geral das três ordens militares da corte, monsenhor e arcipreste da Capela Real, recebeu o título de Conselheiro do príncipe regente, cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, foi encarregado de lançar os hábitos das Ordens de Cristo e de Aviz, recebeu a comenda da Ordem de Cristo, no grau de oficial, foi nomeado para o Supremo Tribunal de Justiça e nele aposentou-se em 1828, além de ter sido deputado na primeira legislatura do Império (1826-1829), quando exerceu a presidência da Assembléia Geral. Em 14 de maio de 1830, aos 77 anos de idade, monsenhor Pizarro faleceu quando caminhava pela aleias do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. É patrono da Rua Monsenhor Pizarro, no bairro de Camarão, em São Gonçalo, RJ.
Da sua grande obra, vale uma leitura integral sobre o que disse ele da Matriz de São Gonçalo de Amarante, demais igrejas católicas, capelas e oratórios, cujos registros estendem-se de 1794 a 1819. E vale não só por isso, como porque ele enumera e nomina os proprietários de fazendas, os engenhos de açúcar e de aguardente, as olarias e outros detalhes que dão ao leitor uma imagem de como era São Gonçalo na virada do século XVIII para o XIX, além de remeter a períodos muito anteriores.
Se é o monsenhor Pizarro tido como primeiro historiógrafo a abordar a História de São Gonçalo, quem detém tal título hoje é o médico Luiz Palmier, que escreveu objetivamente sobre a cidade, em 1940, ao lançar livro comemorativo do cinquentenário de nossa emancipação. Antes dele, na década de 1930, o professor Proto Guerra já o fizera e também o coronel Rodrigo de Carvalho (um dos principais líderes do movimento que resultou na anexação do Acre, então boliviano, ao território brasileiro) editara a primeira estatística completa do município. Ambos os trabalhos foram entregues à Prefeitura Municipal, mas se perderam nos desvãos da nossa falta de memória histórica.
Depois, vieram o professor Homero Guião, na década de 1960, abrindo um novo ciclo de estudo da história do município; Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento de São Gonçalo (IPDESG), na década de 1970, dirigido pelo professor Aurenildo Brito de Azevedo e pelo jornalista Reinaldo Coutinho da Silva; o Centro de Memória (Memor), do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos, presidido pelo professor Hélter Jerônimo Luiz Barcellos; a Academia Gonçalense de Letras, Artes e Ciências (AGLAC); o Grupo Trovão Azul, de professores e alunos do Colégio Municipal Castelo Branco, sob a orientação da professora Maria José Gomes da Silva, na década de 1980, cujo trabalho foi perdido nos descaminhos da Imprensa Oficial do Estado, que se oferecera para editá-lo; o Instituto Histórico e Geográfico de São Gonçalo; e várias iniciativas isoladas de professores, historiadores, pesquisadores e jornalistas sobre a história do Município, entre eles a mestra Maria Nelma de Carvalho Braga.
Sem dúvida, é de 1996 um dos principais acontecimentos na historiografia gonçalense. Naquele ano foi criado o Grupo de Pesquisa História de São Gonçalo: Memória e Identidade, na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ), no bairro de Patronato, que até hoje tem estimulado, sob a orientação dos professores Luís Reznik e Márcia Gonçalves, a elaboração de teses e monografias sobre a História de São Gonçalo, entre estudantes daquela importante unidade de ensino, e publicou a principal obra didática que temos acerca do tema: a Caixa da História de São Gonçalo.
Fontes: Monsenhor Januário da Cunha Barbosa, Biografia dos Brasileiros Distintos pelas Ciências, Letras, Armas e Virtudes, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, abril de 1840, p. 4/5, Biblioteca Nacional.
Rui Aniceto Nascimento Fernandes, historiador.
O Rio de Janeiro nas Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro, p. 247 a 271.