O fim da escravidão

A mão de obra escrava, vinda da África, foi fundamental para o progresso de São Gonçalo. É verdade que, primeiro, os europeus escravizaram os índios, mas como tal foi proibido pela Igreja Católica e, em consequência, pelo governo da metrópole, sua substituição pelos africanos enriqueceu muita gente, seja no tráfico em si, seja nos ganhos de seu trabalho gratuito.

Para que se tenha uma idéia de sua importância, basta citar que, no recenseamento realizado pela Província do Rio de Janeiro, em 1840, a freguesia de São Gonçalo possuía uma população de 15.302 habitantes, dos quais 6 mil eram escravos, ou seja, cerca de 40%. Isto sem falar no relatório do mestre de campo Jorge de Lemos Parady (ou Paradis), de 1779, do qual consta que, naquele ano, existiam 171 fogos (casas) e 942 escravos em São Gonçalo, isto é, uma população escrava quatro ou cinco vezes maior que a livre.

Uma das marcas principais de nossa cidade foi a sua serventia para abrigar escravos fugidos que, como estratégia, nunca formavam grandes quilombos, mas pequenas unidades espalhadas pelo território, de maneira a dificultar a repressão. Tanto assim era que, em 29 de maio de 1821, o procurador das armas da Corte, Antônio Luiz Pereira da Cunha, expediu ofício ao coronel Luiz da França Machado da Fonseca, comandante do policiamento nas freguesias de São João de Icaraí (hoje, Niterói) e de São Gonçalo, determinando-lhe fazer escolta de capitães do mato para prender escravos que se instalaram em quilombos gonçalenses. A ordem foi cumprida, porém sem maiores resultados, devido à dispersão dos núcleos quilombolas.

A estratégia era tão boa que estimulava fugas de escravos nas fazendas ou casas locais, como ocorreu em quatro de outubro de 1822 com um dos que serviam ao cirurgião-mor Luiz José de Oliveira Barreto, ou em 26 de outubro de 1826 com o escravo Antônio, de 18 anos de idade, naquela data evadido da Fazenda Mutuá, de dona Francisca Inácia Jerônima Botelho, e com o escravo marinheiro, com o rosto riscado como os Monjolos, em três de maio de 1831, propriedade do cirurgião Joaquim Hermenegildo da França. Em 29 de junho seguinte, os escravos Tomás e José fugiram de uma situação no Engenho Novo, e em quatro de dezembro de 1832 Jacinto e João se evadiram do Porto da Ponta, deixando o “senhor” Francisco Joaquim da Rocha a ver navios. Eram tantos os casos registrados pela polícia que sua citação seria um não mais acabar.

O sucesso dos mini-quilombos era tal que atraía também escravos de outras paragens. Foi o caso de Severino, de São Domingos, em Niterói, em fevereiro de 1855, e também o de Paulo, fugido da Corte para São Gonçalo em junho de 1857, e Joaquim e Benedito, vindos de São Cristóvão, no Rio, em 24 de março de 1858. Veio gente de mais longe, como João, fugido da fazenda de Custódio Moreira, em 18 de julho de 1857, em Cachoeiras de Macacu, no pé da serra de Nova Friburgo; Rufino, procedente de Paraíba do Sul, no centro-sul fluminense; e Fortunato e Geraldo, que, em outubro de 1867, fugiram da Fazenda Santa Maria, em Bom Jesus do Itabapoana, no norte do estado.

Havia também as fugas extremas: Em dois de abril de 1861, um escravo enforcou-se na Fazenda Laranjal e, em 20 de janeiro de 1878, o escravo Eloy, do fazendeiro Carr Ribeiro, enforcou-se na senzala, mas a corda arrebentou e ele foi preso, isto sem considerar os fatos que sequer chegavam ao conhecimento das autoridades, posto que muitas fazendas tinham seus próprios cemitérios para escravos, como era o caso da de propriedade de Felipe de Barros Correa, em Ipiíba, conforme comunicara à província em 1866.

A rebeldia não se caracterizava somente pelas fugas e suicídios. Ocorria também a reação violenta contra senhores e administradores. Em agosto de 1864, um dos escravos do capitão Carr Ribeiro enforcou a parceira (salva por outro escravo) e matou a foiçadas o feitor; em fevereiro de 1867 o pardo Guilherme feriu o feitor da Fazenda do Laranjal, Antônio Coelho Gomes; e em 29 de novembro de 1878, os escravos da fazenda de Abrantes Filho, em Sete Pontes, espancaram o feitor, entre os muitos casos havidos.

Porém, a proibição do tráfico de escravos (em 1810, 1815, 1817, 1826, 1831 e 1850), a lei que proibia a venda de uma família de escravos, com a separação de seus membros (em 1862, do deputado Silveira da Motta, que viria a ser dono da Ilha das Flores, em São Gonçalo), a lei do ventre livre (em 1871), a lei do sexagenário (em 1885) e outras exigências aos “senhores” fizeram com que muitos fazendeiros de São Gonçalo começassem a dispensar a escravaria e dessem início, ainda na década de 1850, ao processo de divisão das terras, seja vendendo-as para sítios, seja arrendando-as a foreiros, fazendo rarear a mão de obra e reduzindo a produção agrícola, conforme registrou o jornal A Pátria, em seis de maio de 1859. Tal repartição prosseguiu depois da República e alcançou seu ápice nas décadas de 1930/1940, com os loteamentos.

A esta realidade econômica aliava-se também outra de ordem moral: já não era “in” possuir escravos e, assim, vários senhores começaram a conceder-lhes a liberdade, alguns sequer recorrendo ao pecúlio da manumissão então existente, como foi o caso da fazendeira Maria Paula de Azeredo Coutinho da Motta, que libertou seus sete últimos escravos em 1884, e o do capitão João Manoel da Silva, dono da Fazenda Porto Novo, que libertou seus oito últimos escravos (dos quarenta que tivera, 32 dos quais já libertados), em 13 de maio de 1886, exatamente dois anos antes da chamada Lei Áurea. Paralelamente, alguns senhores, pressentindo a morte próxima, deixaram testamento libertando todos os seus escravos, como o fazendeiro José Mariano de Amorim Carrão, em 1884, que deixou livres seus 46 escravos. Porém, quem fez mais do que conceder a liberdade foi o fazendeiro e tenente-coronel (da Guarda Nacional) João Carlos Taveira, falecido em junho de 1857: além de conceder a liberdade a seus cativos, distribuiu suas terras entre eles, para que pudessem se sustentar, como era comum, antes e depois dele, sempre que o testador não tinha herdeiros diretos.

Em Niterói já estava constituído o Clube dos Libertos Contra a Escravidão, que contava com pleno apoio do vereador por São Gonçalo José de Moraes e Silva, e a Câmara Municipal aprovou, em quatro de abril de 1888, ou seja, 39 dias antes do fim do regime escravocrata no território nacional, a lei de autoria do vereador Vítor Próspero David extinguindo a escravidão em Niterói. Porém, é preciso que se diga, Niterói era para os legisladores apenas a freguesia de São João Batista de Icaraí, posto que nas freguesias de São Gonçalo, Cordeiros e Itaipu o regime escravagista continuava a pleno vapor.

Quando a princesa Isabel assinou a lei de abolição da escravatura, em 13 de maio seguinte, as comemorações foram mais loquazes no que hoje chamamos de centro niteroiense. Em São Gonçalo, pouco a comemorar. Só em Cordeiros houve maior movimentação, com jantares e danças por três dias e missa celebrada pelo cônego Galdino Xavier da Silva Malafaia, um dos maiores entusiastas do fim da escravidão, criador, com outros cordeirenses, do Grupo de Instrução Filhos da Luz, com escola no Largo da Matriz e em Guaxindiba para receber os ex-escravos.

Em 17 de maio, os fazendeiros de Cordeiros deram o troco: reuniram-se e criaram o Grupo da Lavoura União e Indústria; em primeiro de julho decidiram pedir à Assembleia Geral (hoje, Câmara dos Deputados) indenização pela libertação dos escravos (com a proclamação da República, no ano seguinte, o pedido desapareceu). Chegaram a criar uma comissão, composta de Pancrácio Frederico Carr Ribeiro, José Mariano Alves e Luiz Gonçalves de Azevedo, para mobilizar os senhores de escravos de todo o Brasil na “campanha de reparação do esbulho que lhes fizeram os poderes públicos, com a indenização da população escrava liberta”. Só receberam um apoio oficial: em cinco de outubro, a Assembleia Legislativa Provincial aprovou proposta do deputado Bento Carneiro para ser enviado ao ministro do Império o pedido de indenização dos senhores dos ex-escravos.

Os abolicionistas, entretanto, não se deixaram intimidar. Os professores Antônio Vieira da Rocha, Antônio Joaquim Alves de Vargas e Manoel Estácio da Costa e Silva uniram-se ao vigário Malafaia e criaram escolas noturnas nas escolas provinciais (depois, estaduais) por eles regidas em Cordeiros, Itaitindiba e Guaxindiba, respectivamente. Trabalhavam de graça e recebiam os ex-escravos para instruí-los. Alcançaram sucesso na primeira hora, com a adesão de várias pessoas: Alfredo Azamor (nome de rua no Boaçu) foi o primeiro a doar vinte exemplares de seu livro de poesias “Sensitivas”, seguindo-se o professor Manoel Ribeiro de Almeida (doou um exemplar de seu Silabário para cada aluno), a professoranda Felisberta do Carmo (aluna do terceiro ano da Escola Normal de Niterói, doou 25 exemplares de sua Corografia da Província do Rio de Janeiro), o professor Miguel Maria Jardim (doou 50 exemplares de aritméticas elementares, 25 doutrinas, cem silabários e cem exercícios de contar), o professor Guilherme Briggs (encaminhou 549 exemplares de obras didáticas doadas por seus autores), e o Barão de Macaúbas (Abílio Cesar Borges, 1824/1891) enviou de Barbacena, MG, 50 livros de leitura, 50 de gramática portuguesa, 25 de geometrias populares, 15 livros técnicos de leitura, 20 seletas de autores modernos e 20 de exercícios de aritmética e geometria.

O entusiasmo inicial era grande – afinal, 21 libertos estavam matriculados em Cordeiros, 12 em Itaitindiba e 33 em Guaxindiba, além dos que frequentavam aulas na escola de música instalada pelo maestro Cirilo Antônio Jorge, na Lira de Euterpe –, mas começou a esfriar logo depois, porque o diretor da instrução pública, Manoel Ribeiro de Almeida, grande entusiasta da iniciativa, foi exonerado, após fazer relatório em que dizia da necessidade de os professores serem apoiados com o custeio da iluminação (a lamparina) das salas de aula e com o material para o exercício da escrita. Logo em seguida, a província indeferiu pedido nesse sentido formulado pelo Centro de Melhoramentos Nova Aurora Cordeirense.

Paralelamente, o número de libertos frequentes às aulas começou a cair, o professor Manoel Estácio foi removido para Niterói e o professor Antônio José Alves de Vargas foi transferido para São Sebastião do Alto, no interior fluminense, ambos em 1889. Restou apenas o professor Antônio Vieira da Rocha, plenamente apoiado pelo vigário Malafaia, também ele removido para o Rio de Janeiro, em 1892, e ali viria a falecer em 17 de setembro de 1921. Com isso, deu-se fim ao sonho de emancipar de fato os libertos por meio da educação.


Fontes: Relatório do presidente da província, Paulino José Soares de Souza, de 01-03-1840.
 Relatório do vice-presidente da província, José Ricardo de Sá Rego, de 01-08-1855.
 Relatório do presidente da província, Esperidião Elói de Barros Pimentel, de 21-05-1867.
 Relatório do vice-presidente da província, Eduardo Pindaíba de Mattos, de 10-10-1867.
 Relatório do presidente da província, José Bento de Araújo, de 08-08-1888.
 Relatório do presidente da província, Carlos Afonso de Assis Figueiredo, de 15-10-1889.
 Arquivo Nacional, Fundo de Polícia da Corte, folha 110.
 Arquivo Nacional, Fundo Marquês do Lavradio.
 Inventário documental dos livros das freguesias de São Lourenço e São Sebastião de Itaipu, p. 130, Câmara Municipal de Niterói.
 Informativo da Câmara Municipal de Niterói, edição nº 2, maio de 2011, contracapa.
 Almanaque Laemmert para 1867, província, p. 59.
 Relatório do Chefe de Polícia, João Galvão da Costa França, de 20-08-1879, p. 10.
 Diário do Rio de Janeiro, 07-05-1822, p. 22; 01-02-1823, p. 4; 03-06-1826, p. 7; 03-06-1831, p. 8;
 Correio Mercantil, 06-07-1831, p. 4; 10-12-1832, p. 3;24-01-1855, p. 3; 24-02-1855, p. 3; 01-08-1855, p. 1; 23-10-1855, p. 1; 21-06-1857, p. 3; 22-10-1857, p. 3; 31-03-1858, p. 3; 26-01-1859, p. 3; 08-02-1859, p. 3; 05-08-1860, p. 4; 06-01-1861, p. 2; 08-04-1861, p. 1; 19-06-1862, p. 4; 09-11-1862, p. 3; 26-11-1862, p. 4; 25-08-1864, p. 1; 16-08-1865, p. 4; 07-12-1866, p. 4; 25-05-1867, p. 4;
 A Pátria, 05-03-1856, p. 4; 13-07-1856, p. 4; 06-02-1857, p. 1; 23-06-1857, p. 4; 01-02-1858, p. 2; 21-03-1858, p. 4; 06-05-1859, p. 3; 08-01-1864, p. 3; 06-08-1865, p. 2; 04-09-1873, p. 2; 16-05-1877, p. 3;
 Echo da Nação, 02-08-1861, p. 4;
 Gazeta de Notícias, 27-11-1875, p. 2;
 O Fluminense, 05-11-1880, p. 1; 30-06-1886, p. 3; 29-06-1888, p. 1; 11-11-1888, p. 2; 03-04-1889, p. 2;
 Diário do Comércio, 25-04-1889, p. 2;
 Correio da Manhã, 18-09-1921, p. 8.

2 comentários em “O fim da escravidão”

  1. Caro sr Jorge Nunes, hoje estive lendo seu artigo “O fim da escravidão”. Eu buscava maiores informações sobre a sra. Francisca Inácia Jerônima Botelho, a qual é citada neste seu texto. Gostaria de parabeniza-lo por este simpático trabalho de pesquisa! Tenho tido muita dificuldade em encontrar estudos já realizadas que me ajudem a conhecer melhor a região e seus habitantes. Parte de minha família paterna vem de Niterói e adjacências e como venho me dedicando à genealogia, tenho muito interesse em São Gonçalo e arredores. Gostaria de saber onde posso encontrar maiores informações sobre Francisca Inácia Jerônima Botelho e também, Antonio Correa Ximenes, João Antonio Correa, Marcolino Antonio Leite e Padre Manoel Antonio Leite. Teria o sr alguma informação extra sobre essas pessoas que me pudesse repassar? Desde já fico-lhe muito grata pela atenção. Tereza

  2. Caro Senhor Jorge Nunes, parabéns por este excelente artigo! Ele tem sido muito útil para as minhas pesquisas sobre a dinâmica política da cidade ao longo da História. Muito obrigado!

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